20.3.10

O rock, a MPB, os guetos e a Sorocaba dos anos 90 - um depoimento

PARTE 01
Em 1989  entrei no SENAI e adquiri minha independência financeira. Eu tinha 14 anos, e foi nessa essa época que comecei a tomar gosto pelo rock. Lia sobre bandas alternativas e locais através da coluna "Mais Cruzeiro" feita pelo mestre Gai Sang, do Jornal Cruzeiro do Sul. Não perdia um programa Som Pop, apresentado pelo Kid Vinil na TV Cultura e cada vez que descobria algo novo, corria para a loja Transa-Som discos e outras para ver se achava os discos das bandas e sons recém-descobertos, muitas vezes pedindo CDs importados das novidades pelo catálogo.
Me lembro que comprei meu primeiro disco de rock após ter escutado uma fita que ganhei de presente do grande Junior Dark. Na fita continha: The Cure, The Neon Judgment, Mecano de um lado e do outro alguns hits da coleta "changes" do David Bowie. Depois dessa fita, tudo começou: Fui para a primeira loja de discos que encongrei na frente, era uma lojinha na Dr. Braquinha  que nem lembro mais onome. Perguntei o que tinham do The Cure (DeKillwri), o cara puxou um "head on the door" novinho, que me acompanha até hoje. Daí pra frente, segui comprando mais discos do Cure e das bandas relacionadas como: Echo and the Bunnymen, Siouxsie and the Banshees, Sisters of Mercy, Front 242, etc... além das famosas fitas k-7 que gravava dos discos que emprestava dos amigos ou dos CD's que a Transa-Som alugava (Cocteau Twins, Front 242, Smiths) - ainda tenho muitas delas. Puta dó de jogar fora. Comprava revistas para ver as novidades, fotos, letras traduzidas... comprava principalmente as revistas Som Três e Bizz pra conhecer as novidades, matérias, histórias e fotos que continham. A fonte de informação não era como dar uma Googlezada e achar as respostas em segundos. Tu tinha que ir na banca e comprar certeiramente. Por muitas vezes, comprava um pacotão ultrapassado do ano passado por um preço mais razoável. Mesmo assim as informações e as fotos valiam a pena. Gostava dos textos do Humberto Finatti, que tinha um estilo jornalístico, vamos dizer assim, mais selvagem. O André Forastieri e o Barcinski eram mais sérios e muitas vezes até arrogantes... era divertido ler as críticas e como contavam e descreviam as bandas e álbuns. Foi lendo os textos deles que eu conheci o termo "pós-punk"(embora não tenha dado muita bola pra classificação na época, afinal, se era 80's e era estranho, não era gótico. Era "dark").
Nessa mesma época passei a frequentar os bares mais alternativos, gays, misturados, descolados da "moderna" Sorocaba dos anos 90: Arara Aurora, Satanássia(esses eu ia e ficava na frente. Não tinha idade pra entrar, mas pedia pros "de maior" comprar as biritas pra mim hehe), Entre Amigos, Iza Uzobona, Bauhaus, Asylo Arkan, Bar Brasil, PUB, Tom Pastel e outros... além de frequentar algumas festas que o Will e a Rosane Guariglia faziam em chácaras, espaços/bares ou até nas suas próprias casas.

Certa vez um amigo da fábrica me convidou pra ir lá no Paço Municipal assistir umas bandas tocarem. Aceitei. Chegando lá, vi uns caras com camiseta rasgada tocando uma música com uma letra absurda, poética e estranha. O refrão era "a peste escala o nosso leito, a peste". Era a banda Lispector desempenhando um cover de "o ápice" dos sempre grandes Vzyadoq Moe - patrimônio do rock Sorocabano. Eu estava diante do festival "De Olho no Som". Vi coisas peculiares esse dia e isso mecheu com a minha cabeça. Tinha algo diferente ali: Ninguém estava ostentando nada... quanto mais zuado, melhor e tinha até "uns caras meio hard-rock" tipo, vestidos igual umas bonecas do Freddie Mercury!

Pela primeira vez vi uma banda de formação anti-convencional num palco (3 teclados/sintetizadores + 1 guitarra), era o Blueshot Eyes, a banda do Eric (hoje propietário do PUB) que mal conseguiu se apresentar devido a protestos de metaleiros e "músicos" causando desordem na platéia alegando playback, para a infelicidade da banda que se apresentava. Foi um bom show, dentro do possível. Um desses que ficaram incitando o ódio à banda synth-pop, foi um cara que estudou comigo no SENAI, era fã de Pink Floyd que estudou violão e guitarra desde a infância e levantava a bandeira do "pisicodelico" com sua banda Latitude Zero, o Didi (que chocou os presentes pelo visual Glam), e não compreendeu o espírito da banda de synth-pop, alegando que "tava tudo programado" (risos). Porra, era uma banda de sinth-pop... o povo não entendia...

Do mesmo jeito que para o Didi aquilo não era concebível, pra mim nem passava pela cabeça comprar um disco de Chico Buarque, Caetano ou Gilberto Gil. Pra mim, roqueiro de verdade não podia gostar de MPB. Um pensamento "não vi e não gostei" alá Paulo Francis cocozão que logo logo não iria se sustentar.

Eu convivia com pessoas de estilos de vida diferentes, estilos de música diferentes, educações diferentes, personalidades diferentes, o trabalho, a escola (manhã, tarde e noite) e tudo se esbarrando em um bar aqui e uma festa ali. Minha cabeça virou uma confusão. Eram coisas demais acontecendo para se entender cada uma delas por mim mesmo. Eu não sabia direito o que realmente acontecia naqueles lugares, mas o que eu consegui absorver foram as musicas, os artistas locais, a amizade dos curiosos (e emblemáticos) donos dos estabelecimentos, e claro, a amiga boemia. Consegui até fazer uma certa amizade com a garçonete mais odiada (e mais competente) da cidade, a Ester (do Arara Aurora bar).
Naquela época eu não tinha a mínima idéia de onde estava me metendo, mas aquela diversidade toda misturada à marginalidade pomposa era como um imã. Eu via muitas pessoas descoladas falando o que pensavam, gays e heteros convivendo harmoniosamente. Eu acho que o que eu queria mesmo era ser aceito do jeito que era, e pensei que quem sabe no meio dessa gente louca, eu poderia obter sucesso. Me saí bem.

Desde 1989 já conhecia a Graça Brito, irmã de um grande amigo meu, que é (e sempre foi) uma fervorosa fã da MPB. Expectadora assídua dos bares com música ao vivo do estilo baquinho e violão, sempre vislumbrou um dia estar lá no palco tocando. Fazíamos parte da nova geração de "entendidos" e gostávamos de pensar que eramos díspares, independentes daquele mundo gay onde a moda, a dace music 90's e a "sapatão music" imperavam nos guetos da cidade. Costumávamos dizer que "a merda mudava de lugar, mas as moscas eram as mesmas", nos referindo aos artistas, público e repertório das intérpretes da MPB da época. A Graça me mostrou um dos primeiros álbuns que eu comecei a respeitar da MPB: GAL COSTA – 1969.

A inovação dessa época (na cidade) eram as Drag Queens, que apareceram causando nos bares de público "misto" da cidade com visuais originais e glamourosos. Nomes como Medéia Dark e Volúpia Delux apareceram do nada naquela Sorocaba onde até roqueiro cabeludo e homem usando brinco era um absurdo, eles inovaram os shows porque não usavam músicas da Witney Houston ou Donna Summer para se apresentarem, e sim Siouxie and the Banshees, Soft Cell, Dee Lite, Kate Bush e tecno-aeróbica (sensação da época). Uma dupla de garotas chamadas "As duas Simones" também se destacavam. Chamavam a atenção daquele povo porque faziam coreografias bastante peculiares e originais (não tenho certeza se uma dessas Simones era a Simone Nolé, mas acho que sim), para ódio e inveja das Travecas que imperavam há anos nos palcos desse tipo de lugar, se apresentando com Disco-Music e MPB.

Pelo estilo de vida e por influência de conhecidos, passei a frequentar o que seria o "circuito Max Kansas City" de Sorocaba: Frequentei os bares Sal da Terra, Garagem (a primeira vez que ouvi o disco todo do Vzyadoq Moe foi lá), Degrau's, Castelinho, Star Light (conhecida como "Bufa", ou "Queima-Filme"), a Chácara(qual era o nome mesmo?)... e muitos outros, que podiam ser um pardieiro, isso todo mundo concorda, mas faziam a mágica de misturar ricos e pobres, fashions e bregas, modernos e ultrapassados, chics e selvagens e finalmente roqueiros 80's e poperôs 90's. Definitivamente gostava muito mais de ir nos bares de rock como o Bauhaus o Asylo Arkan do que nos bares gays, mas não nego que me diverti muito enchendo a cara, se jogando e pirando na diamba.
Eu aprendi bastante nesses guetos. Achei poucos mas numerosos amigos e cheguei a conclusão que não estava satisfeito com a ideologia desses grupos impenetráveis, modistas e egoístas. A vida não poderia se resumir a ir naqueles guetos pelo menos uma vez por semana, e no dia do pagamento, partir pra São Paulo nas boates Blue Space, Corintho, Rave, Sra.Krawitz. Acompanhar novelas, discutir a vida alheia, e o principal passatempo preferido da galera: correr atrás de convites de graça para frenquentar festas chics e eventos associados às lojas de marca dos shoppings da cidade. Eu não tinha nada a ver com o círculo vicioso da "gay life" e também não tinha nada a oferecer à eles. Não tinha carro, não era rico, não tinha uma casa pra receber meus amigos, não era chic, não me esforçava para estar na moda, não tinha uma benga de 23cm, achava um saco as festas dos "modernos", mas gostava de ver um bom show de travesti com a Veluma e a Paulette Wells (essa, pulava do palco e caía no chão da boate numa peitada que fazia um estrondo). Festa boa com essa galera "mix" era quando o Will ou a Rosane Guariglia faziam. Eles sempre souberam misturar públicos em Sorocaba. Devemos muito à eles e não só ao Vzyadoq Moe, mas a todos os amigos deles. Boa parte deles foram as pessoas que montaram esses bares que descrevo aqui. O alicerce dos 90's em Sorocaba foi arquitetado por eles.
Um exemplo engraçado desse povo que desejava ser moderno e chic, mas contrastava  com suas realidades: Tinha um figura engraçado, até gente boa, o "Zalla". Uma vez ele chegou no bar Entre Amigos vestindo uma reluzente jaqueta da Forum, "caríssima", e com um "F" enorme de difícil não-notabilidade. Falava com gosto o preço que havia pago e dava de ombros, e cada amigo que encontrava (se não perguntassem) ele mostrava o jaquetão turbinado. Até aí, tudo bem "cada quá com seu piquá", até o momento que o mesmo pegou o cardápio, e resolveu pedir uma porção. A galera se decidiu por uma porção de batata frita e o mesmo achou "muito pobre". Chamou o garçon e pediu uma porção de algo bem mais caro. Então um amigo da mesa na mesma hora virou e gongou a bela: "Você tem dinheiro pra pagar a porção?", e o mesmo murchou quietinho e abanou a cabeça negativamente. Era sempre assim, muitas figuras desse tipo rolavam pela noite. Vestiam Forum, Zeppelin, Zoomp e etc, mas não tinham um puto no bolso por gastar todo (ou quase todo) o salário com essas bobagens para se enquadrarem no esquema 'fashion'.

Na mesa dos bares aprendi em quem confiar, mas principalmente em quem não confiar, e como reconhecer cada um deles. Mas eu já estava cansado daquilo. Meu negócio era rock, e esse povo não queria nem ouvir falar nisso.

Em 1992 a MTV começou a sintonizar em UHF (era um tal de virar a antena todo dia...) e me mostrou bandas novas e legais. Às vezes programava o vídeo k-7 pra gravar a noite inteira, e no outro dia ia colher os frutos do que rolava nas madrugadas.

Vi estreiar no programa Demo MTV (então apresentado pelo Daniel Benevides) o clipe "rompantes de fúria" dos queridos conterrâneos: Vzyadoq Moe. Foi lindo. Foi literalmente um choque. Fiquei orgulhoso deles. Eu nunca os tinha visto em ação e mesmo sendo um clipe, pude sentir a força daquilo. Tive a sorte de gravar o clipe, e assistindo-o um milhão de vezes com o ouvido grudado no falante da televisão, tentando transcrever a letra (em vão).

Enquanto os modernos curtiam Madonna, Erasure, Right Said Fred, Pet Shop Boys, Gilette, Crystal Waters, Ace of Base, 2Unimited e etc... eu curtia: Alice in Chains, Suede, Body Count, The Young Gods, Nirvana, The Cult, Radiohead, The Auteurs, EMF, Depeche Mode, Jesus Jones, o black álbum do Metallica, Pearl Jam, Ministry, Nine Inch Nails, Frontline Assembly e relacionadas. Foram essas bandas que me acompanharam durante esse período onde dei uma volta no lado selvagem da cidade. Me reservava a escutar o que realmente curtia na minha casa, no meu Walkman, e com poucos amigos roqueiros do colégio e da fábrica onde eu trampava.

Já era 1995, Chico Science revolucionava o rock no Brasil, assim como o Planet Hemp. Eles eram desafiadores e sensacionais, eu os amava. Mas se houve um programa na TV que realmente revolucionou a minha cabeça e me apresentou bandas totalmente fora de modismos, esse programa foi o "Lado B" da MTV. O mestre Luís Thunderbird apresentava e além de colocar na programação tudo de rock que já citei acima, me mostrou bandas diretamente influenciadas por aquelas dos anos 80 que eu já gostava (logo algumas dessas bandas se espalhariam na programação da MTV).

Alguns álbuns em especial deixaram meus pais e os vizinhos loucos a ponto de deflagrar uma guerra dentro de casa: o "Broken" e "Downward Spiral" do Nine Inch Nails, "The Mind is a terrible thing to taste" e "Psalm 69" do Ministry, qualquer um dos Sisters of Mercy e o "insesticide" do Nirvana. Eu adorava esses álbuns. A revolta contida nas letras, o poder da cacetada dos beats, as guitarras e letras gritadas eram tudo o que um multiplamente auto-incompreendido precisava naquela época. Os discos, vídeos e apresentações dessas bandas me faziam bem e despertaram algo dentro de mim. Meus pais já não sabiam o que tinha dado errado com o filho deles. E eu lutava para me livrar das amarras que eles impunham. Saía de casa pela tarde e voltava no outro dia no horário do almoço, para horror dos coroas. Era duro explicar onde tinha ido, com quem estava e fazendo o que. A amiga mentira foi quem me protegeu por todo esse tempo perante minha família, na fábrica e no colégio.
Eu era bonzinho demais e só me ferrava por isso. Eu tinha que mentir "um dia sim e outro também" pra justificar coisas pros outros na fábrica, na minha casa, pra minha família, amigos das antigas, amigos do colégio, vizinhos e quem me cercava.

Já era 1996, e eu vi que meu lugar não eram nos guetos  ou correndo atrás de modismos que o mundo iria me aceitar. Não era nada daquilo que eu precisava. Percebi que tinha que lidar com o mundo como ele era, e o mundo não se resumia aos guetos. O que eu precisava mesmo era tomar uma atitude. Então, tomei uma atitude...

CONTINUA... (um dia)

3 comentários:

  1. ai Rái eu tava lendo a fita, lembrei da minha experiência, a minha foi mais crust acho, mais sangue no zóio pois eu era de votorantim onde tudo era mais duro, aaté pedrada na rua tomei por que andava no visual...ahhaha..até hj sou conhecida como "Renata Heavy " sendo que na é poca eu odiava esse estilo musical!........e o de olho no som..aquilo foi fantástico, o povo vomitando no lago da prefeitura e os patos brigando pra comer tudo..nossa muito radical e inesquecível!..Viva o rock que nos conserva!

    Ass.Renata

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  2. eita de olho no som..
    saudds!!

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